quinta-feira, 10 de março de 2011

Cabe sentença de extinção de Suscitação de Dúvida na forma do 267, VI do CPC?



NOS PROCEDIMENTOS DE SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA PODE O MAGISTRADO EXTINGUIR O PROCESSO, SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO, NA FORMA DO ART. 267, VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL?

Não é raro encontrarmos sentenças terminativas julgando extinta Suscitação de Dúvida, sem resolução de mérito, na forma do art. 267, VI do CPC, fundadas, portanto, em carência de ação.

Referidas sentenças têm necessariamente como pressuposto lógico, ainda que implícito, tratar-se a Dúvida de uma espécie de ação, pois só assim poderiam explicar a extinção por falta de alguma das condições da ação. Alguém discorda?

Também é comum encontrarmos sentenças de extinção de processos judiciais originados do efetivo exercício do direito de ação, sem resolução de mérito, por inadequação procedimental, nos casos em que entende o magistrado que, em razão da previsão do procedimento do art. 198 da LRP, não seria o procedimento ordinário adequado, devendo a parte se socorrer da Suscitação de Dúvida.

Estas últimas não só afrontam a norma do artigo 204 da LRP, mas o que é pior: o princípio da inafastabilidade de apreciação por parte do Poder Judiciário a lesão ou ameaça de lesão.

Sabemos que a Suscitação de Dúvida não é processo judicial, e sim administrativo, não existindo no Sistema de Jurisdição Una ou Inglês - sistema que foi adotado pelo Brasil -, o chamado contencioso administrativo, por sua vez existente no Sistema de Dualidade de Jurisdição ou Sistema Francês.

Aliás, o único procedimento administrativo de curso forçado no Brasil é da Justiça Desportiva, previsto no art. 217, § 1º, da CR/88, senão vejamos: "o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei".

O ato de requerer, levantar de forma direta ou propor de forma inversa a Suscitação de Dúvida, passa longe de ser ação, não podendo ser exigido do particular como conditio da actio constitucionalmente garantida.

Se você considerar que a Dúvida é um procedimento meramente administrativo que não nasce do exercício da ação, sentenças como aquelas inicialmente mencionadas passam a entrar em choque com todo o sistema jurídico.

Para melhor entender, vamos aqui estabelecer qual a natureza jurídica do instituto da Suscitação de Dúvida previsto no art. 198 da LRP, e refletir se referido instituto reúne ou não as características mais evidentes do direito de ação.

A discussão sobre a conceituação de ação é e sempre foi objeto de adoração e fetiche pelos processualistas. Para evitar submergir nessa discussão e desviar o nosso foco, vamor nos limitar aqui a conceituar a ação simplesmente como o direito  subjetivo público de postular a prestação da tutela jurisdicional.

O art. 267, VI, do CPC, trata das hipóteses de extinção do processo, sem resolução de mérito, quando não se verificar presente uma ou mais condições da ação, as quais conhecemos por: possibilidade jurídica, legitimidade das partes e interesse processual.

De fato, é exatamente o que preceitua o referido dispositivo, in literis: "Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito: [...] VI - quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual."

A Suscitação de Dúvida, por sua vez, é procedimento de natureza administrativa, muito embora alguns a classifiquem como procedimento de jurisdição voluntária.

O Ilustre Doutor Ricardo Henry Marques Dip, discorrendo sobre a natureza jurídica da Dúvida, explica muito bem a razão pela qual a devemos considerar como procedimento administrativo e não de jurisdição voluntária, in verbis: "O doutor Vicente de Abreu Amadei terminou sua brilhante exposição indagando se a dúvida é um processo ou um procedimento. Inúmeras vezes tenho insistido nessa caracterização da dúvida como efetivamente um procedimento de caráter administrativo que tem por objeto material a recusa do registro lato sensu de um título no registro de imóveis e nos demais cartórios de registro. [...] O procedimento de natureza administrativa implica dizer, de saída, e isto é relevante, ausência de lide e ausência de coisa julgada material. Mas não se trata apenas de opor a idéia de jurisdição contenciosa a uma visão mais ou menos ampla do que também chamamos de jurisdição voluntária pelo bom motivo de que nenhuma decisão de jurisdição voluntária pode ser controlada por decisão em processo contencioso, diversamente do que ocorre naquilo que chamamos impropriamente de jurisdição administrativa em que pode haver, tal como prevê o artigo 204 da Lei de Registros Públicos, um controle jurisdicional da decisão administrativa. O procedimento de jurisdição administrativa diz respeito a um juízo concreto, o juízo de qualificação negativa, isto é, um juízo de recusa da inscrição de um título. [...] De certo modo, o registraor tem, em segundo grau, um novo registrador. A única coisa que os juízes não fazem, quando determinam eventual registração de um título, é atuar efetivamente como aquele que registra e inscreve o título. No mais, ele atua dentro dos mesmos lindes em que atua o registrador. (Ricardo Henry Marques Dip, in O procedimento de dúvida no registro de imóveis. Palestra proferida no XI Seminário de Direito Notarial e Registral de São Paulo, realizado no dia 21 de abril de 2007, Ribeirão Preto, em http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel2960.asp. Acesso em 24 jul. 2007)"

Considerando a natureza jurídica da Dúvida, representaria uma subversão à lógica pensar que o oficial de registros, ao levantar a Dúvida, estivesse propondo uma ação em face do particular. Da mesma forma, não se pode conceber a ideia de que o particular, ao requerer Dúvida ao oficial, ou mesmo ao ajuizar uma Dúvida Inversa, estivesse exercendo o direito constitucional de ação.

A Dúvida é dirigida ao Estado-administração, representado por juiz de direito no exercício de atividade administrativa correicional e é julgada por sentença que não faz coisa julgada material. 

Já a ação é dirigida ao Estado-juiz, representado por um juiz ou tribunal no exercício do Poder Jurisdicional. A decisão proferida poderá possuir o atributo da definitividade, fazendo coisa julgada material.

O fato do Estado-administração encontrar-se no procedimento de Dúvida personificado na pessoa de um juiz de direito, que também exerce jurisdição, não desnatura a Dúvida e nem a transforma em exercício do direito de ação. Na Dúvida, aquele juiz não está exercendo o Poder Jurisdicional, mas apenas procedendo a uma revisão técnica e administrativa do ato do oficial.

Outro detalhe a considerar é que na Dúvida não existe lide ou conflito de interesses entre o oficial e o particular, sendo essa a orientação do CSM de São Paulo. Não existindo na Dúvida partes (autor e réu) ou conflito de interesses, nela não se forma relação jurídico-processual. Ademais, não é o oficial de registro considerado sequer como interessado no resultado final da Dúvida. 

O oficial tem por lei apenas o dever/poder de qualificar os títulos que lhes são apresentados a registro, registrar os que se mostrarem aptos a ingressar no registro de imóveis, devolver aqueles que não se mostrarem aptos e suscitar Dúvida quando isso for solicitado.

A Dúvida, quando requerida pelo particular, deve necessariamente ser levantada pelo oficial, que não poderá se recusar a isso fazer. Não dispõe o oficial do poder de dispor da Dúvida, decidindo levantá-la apenas se assim entender conveniente.

Com a ação é diferente, podendo o seu titular decidir por exercê-la ou não. Em regra, ninguém é obrigado a propor ação, salvo exceções previstas em lei, como no caso em que o Ministério Público propõe ação penal nos crimes de ação pública incondicionada, sempre que presentes indícios de autoria e materialidade.

Torna-se aqui novamente oportuno citar Ricardo Henry Marques Dip, in verbis: Portanto, o procedimento administrativo é relativo à recusa da inscrição de um título pelo registrador. Esse é um procedimento quase de natureza documentária, ou seja, um processo de documentos de tal sorte que aos juízes, sejam os de primeira instância, pelo Conselho Superior da Magistratura, se atribui quase a mesma competência que se atribui ao registrador. Ou seja, a dúvida, enquanto procedimento administrativo, nada mais é do que uma segunda faculdade de qualificação, tal que se desenvolve a faculdade qualificadora que está em mãos do registrador para o órgão judiciário que atua quase dentro dos mesmos limites em que o registrador atua. [...] O procedimento de dúvida não comporta, em geral, intervenção do registrador que, de si próprio, não é interessado. Talvez, também, fosse possível determinar ou possibilitar esse registro, não só para defesa da instituição, mas o registrador tem uma expreriência peculiar, singular, pontualizada, maior do que a experiência dos juízes e de promotores públicos. Conviria, talvez, que se atribuísse essa faculdade recursal aos registradores nos casos em que se coloca o registrador numa camisa de força, porque ele não pode recorrer e é, eventualmente, condenado ao pagamento de emolumentos e até de honorários advocatícios em sentenças de dúvida. Nessas circunstâncias, o STJ tem concedido a possibilidade de recurso porque não se encontra outra saída para evitar essa condenação. (Ricardo Henry Marques Dip, in O procedimento de dúvida no registro de imóveis. Palestra proferida no XI Seminário de Direito Notarial e Registral de São Paulo, realizado no dia 21 de abril de 2007, Ribeirão Preto, em http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel2960.asp. Acesso em 24 jul. 2007)"

Também não exerce o direito de ação aquele particular que propõe diretamente em juízo a chamada "Dúvida Inversa", e isso porque a Dúvida Inversa nada mais é do que a mesma Dúvida prevista no art. 198 LRP, apenas com uma inversão que em nada altera a natureza administrativa do instituto.

Nela, ao invés do oficial levantar a Dúvida, quem a levanta é o interessado, sendo o oficial intimado posteriormente pelo juiz para responder aos termos da Dúvida inversamente proposta.

Quanto a Dúvida Inversa, cumpre aqui salientar que entendo por sua inadmissibilidade, pois carece de previsão legal. Contudo, é sempre oportuno lembrar que a Dúvida Inversa é amplamente aceita pela jurisprudência do Conselho da Magistratura de São Paulo.

No Espírito Santo, onde milito como advogado, tenho verificado que a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça local ainda oscila entre decisões que admitem a Dúvida Inversa e decisões que não a admitem. De qualquer modo, seja admissível ou não, jamais poderá a Dúvida Inversa ser considerada ação. 

Retornando agora ao tema central em estudo, e tomando como premissa que a Dúvida não possui a natureza de ação, é de se perguntar: como pode uma sentença extinguir um procedimento de Dúvida por ausência de uma ou mais condições da ação? A resposta é clara: não pode, devendo ser evitada a prolação de sentenças desse jaez, até porque revelam desconhecimento do julgador acerca da própria natureza do instituto com o qual está lidando.  

Mas se a Dúvida não é ação, o que ela é?

Entendo que o instituto previsto no art. 198 da LRP trata de uma revisão da decisão do oficial registrador quando este indefere pedido registro, afeiçoando-se mais a uma espécie de recurso administrativo.

Vejamos o que diz o art. 198 da LRP: Art. 198. Havendo exigência a ser satisfeita, o oficial indicá-la-á por escrito. Não se conformando o apresentante com a exigência do oficial, ou não a podendo satisfazer, será o título, a seu requerimento e com a declaração de dúvida, remetido ao juízo competente para dirimi-la, obedecendo-se ao seguinte: [...]

A Dúvida nasce, portanto, do inconformismo do particular com a exigência a ser satisfeita ou com a impossibilidade em satisfazê-la, razão pela qual requer ao próprio oficial que encaminhe a questão ao juízo competente para dirimi-la. Trata-se, como se vê, de pedido de uma segunda decisão, ou seja, trata-se de um recurso.

E essa sua natureza de recurso administrativo tem sido base, aliás, para julgados que denegam ordem de segurança contra ato do oficial que qualifica negativamente título apresentado a registro.

Preceitua o art. 5o, da Lei Federal n. 12.016/09: Art. 5o. Não se concederá mandado de segurança quando se tratar: I - de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução.

O efeito suspensivo na Dúvida, no meu entendimento, é proporcionado pela prenotação do título, a qual perdurará até o julgamento final, garantindo ao título prioridade e impedindo que qualquer outro título contraditório venha a galgar registro em prejuízo do título versado na Dúvida.

Preceitua o inciso I, do art. 198 da LRP: I - no Protocolo, anotará o oficial, à margem da prenotação, a ocorrência da dúvida.

A decisão proveniente dessa revisão, pela LRP chamada de sentença, também não passa de uma decisão administrativa, produto que é de um segundo exame de qualificação, desta vez realizado pelo juiz corregedor ou pelo juiz diretor do fórum, isso a depender do que dispuser a Lei de Organização Judiciária do local.

Quanto à já mencionada Dúvida inversa, que é aquela proposta pelo interessado direitamente em juízo, para aqueles que não quiserem admiti-la como sendo um recurso, podem considerá-la equiparável ao exercício do direito de petição, previsto no art. 5o, XXXIV da CR/88, mas nunca ao de ação.

Ainda que não bastem os argumentos acima expendidos, cumpre sempre lembrar que o art. 204 da LRP reforça a ideia de que a Dúvida não pode ser considerada ação. Referido dispositivo informa, em outras palavras, que a sentença proferida na Dúvida não faz coisa julgada e não afasta o efetivo exercício do direito de ação: Art. 204. A decisão da dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso competente.

É oportuno informar, por necessário, que as jurisprudências do Supremo Tribunal Federal (RE 91.236-3 e RE 85.606) e do Superior Tribunal de Justiça (RESP 13.637-0-MG, RESP 119.660-SP, RESP 689.444-RS e AGR. INSTR. 29.262-3), consideram não se enquadrar a Suscitação de Dúvida no conceito de "causa", razão pela qual nela é inadmissível a interposição dos recusos extraordinário e especial.

Mas se na Dúvida não cabe extinção do processo na forma do art. 267, VI do CPC, quais as hipóteses possíveis de resultado em uma sentença de Dúvida?

A LRP tem como possíveis apenas dois resultados para a sentença na Dúvida, o de procedência e o de improcedência, conforme previsto no art. 203, I e II: art. 203. Transitada em julgado a decisão da dúvida, proceder-se-á do seguinte modo: I - se for julgada procedente, os documentos serão restituídos à parte, independentemente de translado, dando-se ciência da decisão ao oficial, para que consigne no Protocolo e cancele a prenotação; II - se for julgada improcedente, o interessado apresentará, de novo, os seus documentos, com o respectivo mandado, ou certidão da sentença, que ficarão arquivados, para que, desde logo, se proceda ao registro, declarando o oficial o fato na coluna de anotações do Protocolo.

Acredito que do mesmo pensamento já compartilhava Gilberto Valente, e hoje dele compartilham os ilustres Valestan Milhomem da Costa, Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento, Ricardo Dip, Sérgio Jacomino, Lamana Paiva e Walter Ceneviva, dentre outros de igual renome.

Contudo, é importante aqui salientar que o julgamento da Dúvida pode restar prejudicado por várias questões que são próprias ao seu universo, tais como a falta de prenotação na Dúvida Inversa; o cumprimento de exigências no curso do processamento da Dúvida; a irresignação parcial com relação às exigências do oficial e outras. A jurisprudência paulista, bastante avançada em se tratando de Suscitação de Dúvida, admite amplamente o reconhecimento de prejudicialidades.

CONCLUSÃO: Não ocorrendo o exercício do direito de ação nos procedimentos administrativos, neles não é possível a prolação de sentença de extinção do processo, sem resolução de mérito, na forma do art. 267,VI, do CPC, sendo este o caso da Suscitação de Dúvida prevista no art. 198 da LRP.

DR. PHELIPE DE MONCLAYR POLETE CALAZANS SALIM






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